quarta-feira, 31 de março de 2010

A Porta do Sonho * de Sylvio Costa Filho

Estava eu numa praça
na venda dos meus folhetos
me apareceu cara a cara
o fulano de um sujeito
desafiando meu verso
e desfiando seu terço.

O vivente feito um louco
me chamando de chulé
recebeu logo seu troco
seu lugar de Zé Mané
perguntei pelo seu nome
e me respondeu: Anônimo.

Anônimo era o tal
De Nada Da Coisa Nenhuma
que procurou Zé Cordel
para escrever as venturas
das aventuras de glória
na vida de sua memória.

- É o seguinte, seu Zé,
começo a lhe clarear
há muito que lhe procuro
pois tenho andado no escuro
e preciso de um certo roteiro
pra me poder espalhar.

E foi o homem falando
e eu entender tentando.

- É que sendo o sinhô
autor de tantos folheto,
de romance escrevinhador,
e tanto herói que o sinhô
com sua pena heroizô,
que resolvi me soltá
em busca de lhe encontrá.

Mas ainda eu não sabia
que o que o fulano queria
era entregar o seu dia
e aí virar poesia.
Então foi se esclarecendo
e eu lhe fui percebendo.

Não conheceu pai nem mãe
nasceu na porta da rua
criado pelos passantes
e batizado pela lua.
Nem cangaceiro, milagreiro,
nem peão e nem poeta.

Perguntei se era político
feito o bode vereador
e ele me disse crítico
que não era, "não senhor!"
Que mais que tudo na vida
era mesmo sonhador.

Mas isso não faz vergonha
isso todo mundo é
de um jeito ou de outro
pois um homem que não sonha
é praticamente um morto.

Só que o que ele sonhava
era coisa de mais profundo
pois a chave ele carregava
da Porta do Sonho do mundo.
Então ele conversava
de cara a cara com tudo.

Foi assim que conheceu
a beleza clara da Lua
a madrinha que apareceu
abrindo-lhe a porta da rua
no caminho onde ele nasceu.

E ganhou de S. Jorge
seu padrinho lá no céu
uma espada de ajuda
e pra ele não se perder
um galinho de arruda
e capim de São Saruê.

Madrinha Lua, airosa,
sanfonando toda prosa
entregou as encomendas
explicou toda a receita
e partiu pelos portais
lumiando outros quintais.

Espada, arruda e capim
lá da outra dimensão
vieram cair-lhe assim
nas mãos, para proteção.

A espada da bondade
a arruda da clareza
contra o dragão da maldade
e a treva da tristeza.
E o capim de São Saruê
pra quando quiser se esconder.

O matinho que mordido
ali no canto da boca
fazia ficar invisível
feito uma alma sem roupa.
Vindo de onde não se vê:
o País de São Saruê.

Entrou no sonho de Anônimo
um tal de Barão Sabão,
um doutorzinho emplumado
criador de confusão,
um coronel diplomado
do tempo da escravidão.

Apresentou língua grande
de quem traz rei na barriga.
Era grande a sua fome
e maior a sua intriga.
Desacatou o Anônimo
e ameaçou sua vida.

Depois acordo propôs
oferecendo trabalho
uma instrução de escola
e um mínimo de salário.

Então veio D. Arlete,
a professora severa
da escola especial,
ensinando no porrete
que Anônimo não era
nada mais que um animal.

Arlete ganhava pouco
por isso estava nervosa
e partiu para o Anônimo
com sua régua raivosa.

Ele, que já tinha usado
sua arruda lá do Céu
contra aquele mau-olhado,
tratou de se defender
mordendo o enfeitiçado
capim de São Saruê.

E sumiu feito Saci
espantando a professora,
que não o vendo ali
foi ficando quase louca.

Depois se fez ver de novo
e ela ficou mais calma
com a mansidão do povo
de quando lhe baixa a bola
falando bem direitinho
até com carinho agora.

Explicou a situação:
vivia na escravidão,
era vítima do Barão
e do medo no coração.

E quando esse "tal" voltou,
a coisa ficou mais quente,
de ira ele se inflamou
e despensou D. Arlete
mas no vazio escutou
a voz feito um alfinete.

Era Anônimo escondido
no invisível do capim
soprando-lhe ao pé do ouvido
o erro de ser assim.

E o Barão piorou
já foi sacando a pistola,
mas Anônimo pulou
devolvendo-lhe a bola.

Chegou a hora do embate
o instante derradeiro
em que o Dragão da Maldade
partiu para o Santo Guerreiro
nesse momento fatal
do Céu veio o padroeiro.

E a lança que desceu
bem na idéia do barão
amansou-lhe feito mel
o caroço do coração
sossegou-lhe o temporal
no sol quente da razão.

E saiu pisando fino
o coronel do sertão
que por ser pobre de espírito
e rico de pretensão
descangotou o juízo
e se perdeu da função.

E Anônimo contava
como venceu a parada
desse bandido invasor
que muito o ameaçou,
mas pra surpresa maior
mais uma história contou.

Me disse que certo dia
aí na estrada da vida
enquanto andava sozinho
ouviu uma voz que vinha
do alto de uma colina
e bem mais alto que acima.

Foi a visão de um menino,
um anjo pra ser preciso,
que disse já ter subido
pra proteger os sozinhos
que na Terra, feito Anônimo,
passavam pelos caminhos.

Era o Santo Candelária
um menino assassinado
que agora lá estava
de asas, já coroado,
pra sempre anjo da guarda.

E o anjo lhe mandou
me procurar e contar
suas histórias de sonhos
pra eu passar pro papel
num folheto de cordel
as aventuras de Anônimo.

E nós temos que mostrar
em nome da consciência
para um dia se acabar
tanta fome e violência
a história de Anônimo
em toda sua evidência.

Por isso fiz o folheto
pr'esse Pessoal Aí
e vim para o teatro
aqui mostrar meu papel
com o nome: "A Porta do Sonho"
assinado
Zé Cordel.

* A Porta do Sonho foi um espetáculo teatral
encenado pelo Grupo Pessoal Aí, em meados da década de 90 e percorreu bairros e distritos de Petrópolis fazendo parte do projeto "Mambembe" de Teatro nas Comunidades, da Prefeitura Municipal de Petrópolis.
Participaram como atores:
Marcos Davi, Nilson Tassi, Pita Cavalcanti e Sylvio Costa Filho


Lê...Minski - leitura dramatizada